Acordava já atrasado. Tomava um banho rápido e saía. Parava no bar da esquina e pedia um café com conhaque. Raramente comia um pão na chapa.
Acendia um cigarro enquanto caminhava pro ponto. Às vezes perdia o ônibus de propósito, pra poder fumar ao menos um cigarro até o fim e o jogava no lixo depois de apagá-lo na sola do tênis. Esperava o próximo passar.
Dormia no ônibus e quase sempre acordava antes de chegar onde tinha que descer. Quando não, ia até o ponto final, pedia carona pra voltar e, enfim, descer no ponto certo. O ponto certo que me parecia o mais errado, o último lugar em que gostaria de saltar (principalmente na hora em que chegava por lá).
Hoje, tanto faz saltar ali ou não. O local é até bonito, uma praia com alguns quiosques e bares, palmeiras, belos urubus e outros pássaros em meio à sujeira jogada na areia pelo mar (como em qualquer outra praia da baía). O problema é pra onde caminhava depois de descer: TRABALHO.
Ainda tento entender a forma estupidamente genial que o sistema tem pra enobrecer algo tão torturante quanto o instrumento das masmorras medievais que deu origem ao seu nome. A venda do suor e das idéias, a desistência dos sonhos pra ter que se empenhar no projeto de vida escroto dos outros: a acumulação de riquezas, as trocas desiguais, as relações sociais hierarquicamente construídas, os pequenos Olimpos, castas, classes e subclasses criadas e mantidas pelo clima de terror e competitividade. Alucinação e alienação coletivas, rituais de disputa e complacência.
Desisti de ser mais um parafuso nessa máquina de merda num dia em que cheguei atrasado, como outro qualquer. Tinha acabado de descer do ônibus após acordar em cima da hora, com o motorista arrancando para sair do ponto. Fui até a copa tomar um café e vi meu chefe com a cara amarrotada de sono e com migalhas de pão na barba, tomando café e conversando com um funcionário lambe-ovos sobre uma prostituta que havia contratado na noite anterior:
-Tá de sacanagem? Cara assim?
-Foda-se! Valeu cada centavo e cada hora não dormida. Novinha, toda gostosinha. Parecia tá começando ontem. Chorava com cada tapinha na cara. Quando dei-lhe um com vontade mesmo, quase apagou de susto.
E passaram toda a manhã rindo do terror passado por uma garota assustada com a primeira venda da sua própria carne, do seu suor e das suas ideias, a desistência dos seus sonhos pra ter que se empenhar no projeto de vida escroto dos outros.