domingo, 2 de setembro de 2012

Tripalium


Acordava já atrasado. Tomava um banho rápido e saía. Parava no bar da esquina e pedia um café com conhaque. Raramente comia um pão na chapa.
Acendia um cigarro enquanto caminhava pro ponto. Às vezes perdia o ônibus de propósito, pra poder fumar ao menos um cigarro até o fim e o jogava no lixo depois de apagá-lo na sola do tênis. Esperava o próximo passar.
Dormia no ônibus e quase sempre acordava antes de chegar onde tinha que descer. Quando não, ia até o ponto final, pedia carona pra voltar e, enfim, descer no ponto certo. O ponto certo que me parecia o mais errado, o último lugar em que gostaria de saltar (principalmente na hora em que chegava por lá).
Hoje, tanto faz saltar ali ou não. O local é até bonito, uma praia com alguns quiosques e bares, palmeiras, belos urubus e outros pássaros em meio à sujeira jogada na areia pelo mar (como em qualquer outra praia da baía). O problema é pra onde caminhava depois de descer: TRABALHO.

Ainda tento entender a forma estupidamente genial que o sistema tem pra enobrecer algo tão torturante quanto o instrumento das masmorras medievais que deu origem ao seu nome. A venda do suor e das idéias, a desistência dos sonhos pra ter que se empenhar no projeto de vida escroto dos outros: a acumulação de riquezas, as trocas desiguais, as relações sociais hierarquicamente construídas, os pequenos Olimpos, castas, classes e subclasses criadas e mantidas pelo clima de terror e competitividade. Alucinação e alienação coletivas, rituais de disputa e complacência.

Desisti de ser mais um parafuso nessa máquina de merda num dia em que cheguei atrasado, como outro qualquer. Tinha acabado de descer do ônibus após acordar em cima da hora, com o motorista arrancando para sair do ponto. Fui até a copa tomar um café e vi meu chefe com a cara amarrotada de sono e com migalhas de pão na barba, tomando café e conversando com um funcionário lambe-ovos sobre uma prostituta que havia contratado na noite anterior:
       -Tá de sacanagem? Cara assim?
       -Foda-se! Valeu cada centavo e cada hora não dormida. Novinha, toda gostosinha. Parecia tá começando ontem. Chorava com cada tapinha na cara. Quando dei-lhe um com vontade mesmo, quase apagou de susto.

E passaram toda a manhã rindo do terror passado por uma garota assustada com a primeira venda da sua própria carne, do seu suor e das suas ideias, a desistência dos seus sonhos pra ter que se empenhar  no projeto de vida escroto dos outros.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dias e Noites

A poesia não tem mostrado seu encanto
Têm sido maiores o desespero, o espanto
Dias e noites de guerra, somente
Não enxergo graça nas pequenas migalhas, Galeano
Falavas de amor em tempos de ódio,
de fagulhas dançantes de ternura
que faziam a pólvora arder
Mas, quando passei a perceber
o medo e o egoísmo que permeiam certas pelejas,
me faltou ar e vontade.
Talvez, também me falte amor a oferecer.
Mas nisso, a culpa não é só minha.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Longe Serei Deus

A mente vai pra onde quer
e carrega o corpo com ela.
Seguem por belos campos de cores e formas lisérgicas,
às vezes por valas sujas e sarjetas fétidas,
mas ainda vão.
Vou
Voo
Alto
Auto
Preciso demais de mais

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Atenuante

As palavras as vezes ficam empacadas.
Não saem quando as quero no ar ou no papel,
vibrando no ouvindo de alguem
ou enchendo as pupilas de letras e imagens.

Palavras que parecem ter vida e vontade proprias,
que dizem o que querem dizer por si proprias,
que são totalmente indiferentes aos meus desejos,
às minhas vontades, às minhas idéias.

Quando surgem, quando se libertam do autocárcere,
o fazem causando um transtorno imenso a mim.
Me torno refém, mas sou visto como autor
e sofro todas as consequencias dos seus atos e gestos
e formas e mensagens e estilo e...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Um Zen-poeta-zumbi-alcoólatra.

Caminho com as mãos nos bolsos, um cigarro na boca e só.
passa por mim um cachorro em busca de comida ou um lugar seco pra domir.
sinto pena, mas admiro sua liberdade tão estranha.
Sigo olhando tudo, mas sem foco algum.
tremo com uma súbita rajada de vento que passa. madrugada fria.
não tem mais ninguem na rua.

A rua as 4 da manhã não parece a mesma de 12 horas antes.
ninguem comendo salgado na esquina,
fumando cigarros mentolados
ou comprando seda pra apertar um baseado.

Me sinto bem melhor por aqui quando ela está vazia.

Olho o Mercado fechado e, por tras dele, a pedreira,
a mesma pedreira que consigo ver da minha casa
mas nunca lembro de olhar,
talvez por ter me acostumado com sua beleza constante.

As palmeiras no alto balançam com o mesmo vento que faz meu queixo bater.
e as folhas balançam junto com meus cabelos.


Resolvi esperar mais um pouco antes de subir.
vou curtir a companhia das palmeiras antes de dormir.
Talvez, até o sol sair
ou só ate o cigarro terminar de queimar.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Banquete e convidados


Cães avançam uns sobre os outros
disputando um prato com comida podre.
Um velho mendigo os observa
com pena, abaixa a cabeça e chora.

Abre uma pequena sacola

Despeja sobre a calçada
arroz, feijão e, talvez, um pedaço de carne
se põe de quatro e os convida

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Povo

Deixem que morram em suas greves de fome
são seres marginais que não mais nos respeitam
e servem apenas para demonstrar o poder que temos

deixem que morram extraindo diamantes
pois já extraimos sua energia o suficiente
e diamantes lapidados valem mais que mil vidas

deixem que morram cortando cana
pois de um corte em seus braços não escorre sangue
escorre lucro

servem apenas para alimentar o medo e manter o controle,
para extrair riquezas em troca de migalhas,
para sangrar pelo nosso poder, pelo progresso da nação
que jamais zelará por eles. que apenas espera que continuem
com braços fortes enquanto forramos os bolsos
e disseminamos a complacência